Clara Trigo é uma profissional multitarefas. Professora, pesquisadora, dançarina, coreógrafa e gestora de projetos, ela acumula mais de duas décadas como profissional do movimento. E foi ela quem criou a Flymoon, esse aparelho portátil altamente funcional e que possibilita desafiar os exercícios no Pilates. Nessa entrevista, ela conta tudo sobre a Flymoon e sobre como utilizar o equipamento. Confira.
1. Vamos começar falando um pouco mais sobre você. Conte-nos quem é Clara Trigo.
Essa definição é sempre difícil. Vou fazer assim, quem quiser me conhecer, pode começar lendo um pouco de Manoel de Barros, Paulo Freire, Elsa Gindler, Mabel Todd e Moshe Feldenkrais. Também deve dar uma olhadinha, por exemplo, nos desenhos de M. C. Escher, Pablo Picasso e Chema Madoz. Também deve ler as poesias de Alice Ruiz, ouvir Arnaldo Antunes e Mestre Lourimbau e conhecer algo do pensamento de Hélio Oiticica. Pode ainda assistir a uns filmes de Win Wenders e às obras de Philippe Decouflé. Além disso, precisa ver Israél Galván e Belem Maya dançando. Certamente tem que começar a dançar e sentir um pouquinho a instabilidade da Flymoon®. Isso para começar (risos).
Assim como esses que eu admiro, minha vocação é “inventar mundos”. Faço isso principalmente através do movimento, de brincar com o corpo, brincar de mover. É daí que tudo mais se desdobra e se realiza. A arte, a educação, a engenhosidade dos inventos, a poética, o cuidado com o outro. De formação, sou educadora e artista. Fiz Licenciatura em Dança na UFBA. Minha vida na dança e na arte começou muito antes da faculdade, mas a faculdade de dança foi um marco na minha forma de pensar, mover e entender o mundo.
Eu sou uma artista, uma militante de causas cidadãs, feministas e culturais e sou uma educadora. Me dediquei a vida toda a entender de movimento humano, que, no final das contas, é entender o humano. Assim, entender os corpos é entender as pessoas.
2. Você desenvolveu um equipamento muito potente. Então para falar tudo sobre a Flymoon, você pode começar pelo conceito. O que a Flymoon?
A Flymoon® ou o Flymoon®, pois não há restrição quanto ao uso de artigo masculino ou feminino, é o equipamento idealizado por mim e desenvolvido e nomeado em parceria com a Physio Pilates. Esse equipamento nasce da Meia Lua ou Baby Arc, do Pilates. Em 2001, eu comecei a investigar as possibilidades de movimento que a posição instável oferecia. Em 2002, a semente da Flymoon® apareceu em público como objeto cênico, no meu primeiro espetáculo, Ideias de Teto. Alice Becker dançava neste trabalho e era a dançarina desta cena.
Em 2006, depois de muita experiência com essa instabilidade, conversei com Alice sobre o desenvolvimento deste trabalho e ela me propôs treinar toda a equipe de professores e educadores com meu repertório. Daí nasceu o primeiro workshop, que se chamava Workshop de Meia Lua Invertida. Ainda em 2006, ao ser convidada para oferecer uma aula em Londres, Alice me pediu autorização para mostrar lá o meu repertório, começando aí a difusão internacional dessa criação. A partir daí, por uma conjuntura favorável, a fábrica de equipamentos Physio Pilates desenvolveu as soluções técnicas apontadas pelos anos prévios de prática: bordas maiores, abauladas e acolchoadas, estrutura de madeira reforçada para sustentar o peso sem partir e acabamento interno com borracha, espuma e tecido, mantendo a integridade da peça.
Em 2006, tive o prazer de ser presenteada com o primeiro protótipo de Flymoon® e, em 2007, ela começou a ser comercializada.
Testado o protótipo, eu e Cláudio passamos a discutir o nome. Ele recomendou criarmos um nome em inglês, por entender o caráter internacional do objeto, e sugeriu FlyingMoon. Eu gostei do nome, mas sugeri a redução para Flymoon, ainda que esta redução faça menos sentido na gramática do idioma inglês.
3. Qual a ligação entre a Flymoon e o que você chama de “Instabilidade Poética”?
A existência da Flymoon® tornou muito concreto e material um pensamento que eu já vinha aplicando e praticando como artista e educadora. Porém, não tinha me dado conta da dimensão do que estava desenvolvendo. Com muitos anos de experiência ensinando a profissionais de movimento, ficou mais claro que havia algo no que eu estava ensinando que ia além do repertório de exercícios e refinamento na execução. A contribuição que eu estava dando – e podia aprofundar – vinha não apenas da minha experiência com movimento, mas também da abordagem metodológica que eu devo à minha prática artística.
Havia algo que eu já estava oferecendo “em segundo plano” nos meus workshops, que precisaria vir para o primeiro plano, que tem mais relação com a forma como tudo isso se constrói do que com o exercício em si. Então, para falar sobre esse processo complexo de soluções instantâneas e construção de conhecimento que acontece no corpo de cada um, ao se deparar com a instabilidade da Flymoon®, tive que encontrar uma síntese. O termo Instabilidade Poética veio para sintetizar esse reconhecimento da instabilidade. Veio da incerteza, da insegurança, como uma oportunidade de encontrar novas soluções no próprio corpo, de forma autônoma, individual e poética, incluindo aspectos do imaginário, da fantasia, da invenção, da brincadeira.
É tão poderosa essa instabilidade, que obriga cada um a encontrar suas próprias soluções. Ou seja, o papel do professor muda. Deixa de ser a condução absoluta de cada mínimo movimento do aluno, para ser a criação de um ambiente de confiança. É a realização das mais diversas experiências motoras, em benefício da autonomia do aluno, tornando cada movedor um investigador de si mesmo, um produtor de conhecimento sobre seu próprio corpo. Então esse é um aspecto que resulta dessa metodologia, desse conjunto de práticas, que chamo de Instabilidade Poética.
4. Ainda nesse contexto de tratarmos aqui tudo sobre a Flymoon, fale um pouco sobre qual objetivo do equipamento.
Esse equipamento não é específico, como um equipamento de musculação, por exemplo, que te coloca numa posição para trabalhar um determinado grupo muscular e nada mais. A Flymoon® é como um brinquedo, pode servir para múltiplos objetivos. A mínima variação na posição, na descarga de peso, no jeito de apoiar uma parte ou outra do corpo, tudo isso vai modificar a quantidade de força aplicada, a estratégia proprioceptiva. É um sem fim de possibilidades.
Vou fazer uma lista básica, só para começar a dar algumas ideias das possibilidades. Com Flymoon®, por exemplo, é possível realizar: agachamentos, mobilizações de coluna, mobilizações escapulares, trabalho abdominal diferenciado (sem o esforço de levantar a cabeça do chão), fortalecimento de musculatura intrínseca do pé, fortalecimento de toda a musculatura da perna, braços, tronco; trabalho de equilíbrio.
Além disso, é muito indicado para a fase final de reabilitação de entorses de tornozelo; para prevenção de quedas; para a melhora da eficiência de movimento de uma forma geral. Ademais, sua característica especial de balançar instiga o gosto e a curiosidade pelo movimento. As aulas de Flymoon® podem ter diferentes graus de dificuldade, atendendo a crianças, idosos, atletas, pessoas ociosas, artistas de circo, pessoas em fase de reabilitação e tantos outros.
Uma aula de Flymoon® pode até ser dada pelo seu professor de Pilates, mas é uma aula de Flymoon®. Isso porque a metodologia (a Instabilidade Poética que falamos antes) se diferencia das metodologias de Pilates e privilegia aspectos como: investigação e liberdade de movimento, busca criativa e construção da autonomia do indivíduo.
As aulas desafiam o equilíbrio, o controle de centro, a força e a coordenação motora, sempre de forma lúdica. As práticas podem acontecer em sessões individuais ou coletivas.
5. Quais foram suas fontes de inspiração para criação da Flymoon?
A primeira e mais imediata foi a meia lua, do Pilates. O arco já estava lá, só esperando que alguém o virasse (risos). Aliás, me surpreendeu não ter encontrado registro de ninguém ter feito isso antes. Depois que comecei a difusão do trabalho, e depois da aula de Alice em Londres, apareceram alguns clamando para si a ideia, mas logo esmoreceram, porque as raízes e o aprofundamento da ideia só são possíveis quando se está em contato com as fontes que te levaram à ideia. Essas “fontes” estão na minha infância, no meu gosto por inverter, pendurar, brincar de mover o tempo todo.
Como diz Stephen Nachmanovitch: “muitas das grandes descobertas científicas, artísticas e espirituais foram na verdade a revelação de uma obviedade surpreendente que ninguém até então havia conseguido ver ou imaginar, porque estavam todos demasiadamente amedrontados ou excessivamente apegados ao pensamento tradicional”.
6. Como a Flymoon® trabalha? Em quais as áreas do corpo podemos utilizar o equipamento?
Essa pergunta tem muitas respostas, porque Flymoon é um equipamento multiuso, que vai crescer em complexidade, quanto mais qualificado for o profissional que lhe der uso. A simplicidade do design lhe permite infinitas possibilidades na experiência. Se estamos apenas parados em pé, as principais áreas solicitadas serão estabilizadores de tronco (abdominais, para vertebrais e multífidus) e de pernas (adutores, panturrilhas). Mas isso varia de pessoa pra pessoa, e essa é uma característica muito interessante. Mesmo podendo prever muito do que se faz, cada corpo terá uma experiência diferenciada em termos musculares.
Se estamos “Andando na Lua” os principais músculos envolvidos são quadríceps e panturrilhas, alternando contração excêntrica e concêntrica, além de toda a musculatura estabilizadora do tronco, que está sempre inteligentemente acionada pela instabilidade. Se estamos com as mãos apoiadas sobre as bordas, dobrando e estendendo os cotovelos, utilizaremos muito peitoral, deltoide e tríceps, sempre em contrações excêntrica e concêntrica, além da musculatura anterior do tronco, em intensa atividade estabilizadora, em resistência à gravidade.
Pela instabilidade natural do equipamento, toda a musculatura do tronco atende ao comando involuntário de aproximar do centro, gerando o “estreitamento” do tronco. Ou seja, a sensação de “afinar” e “crescer”. O controle postural é beneficiado como um todo, já que o alongamento axial é consequência do trabalho continuado sobre a Flymoon, assim como o ganho de estabilidade nos tornozelos e o incremento no equilíbrio. Ganho de força e propriocepção são também consequências naturais desse trabalho. Além disso, as possibilidades de balanço da Flymoon favorecem a ludicidade da aula. Isso torna a criatividade de seu aluno parte integrante do processo de condicionamento físico.
*Entrevista atualizada, originalmente publicada em 16 de março de 2017.