Os frágeis alicerces da Casa de Força (expostos pelo mito de um núcleo estabilizador)

Já há algum bom tempo venho questionando o Power House. Power House, a Casa de Força, é uma metáfora usada por muitos seguidores de Joseph Pilates para um grupo específico de músculos do tronco que, quando ativado, supostamente estabilizaria o tronco.

Esta convicção foi corroborada por estudos do final da década de noventa resultando num entendimento de estabilidade do tronco conhecido como Core Stability que, muito cultuado em academias e clínicas de fisioterapia desde então e tal qual o Power House, se daria também através do recrutamento de um grupo específico de músculos do tronco.

Recentemente li uma matéria de Eyal Lederman, osteopata e pesquisador de neurofisiologia da terapia manual, intitulada “The Myth of Core
Stability” (https://bit.ly/2j06UFN), confirmando algumas das minhas suspeitas. Cheguei a esta matéria através de uma postagem da fisioterapeuta Janaína Cintas comentando a publicação de Eyal Lederman (https://bit.ly/estnucelo). Aqui faço a minha leitura de ambas as matérias.

Lederman afirma que o Core Stability apóia-se principalmente nos seguintes pressupostos:

  1.  Certos músculos são mais importantes do que outros na estabilização do

tronco. O músculo abdominal transverso é o principal deles. Estes

músculos formam um suposto núcleo estabilizador do tronco.

  1. Este suposto núcleo estabilizador do tronco trabalha independentemente

dos outros músculos do tronco.

  1. Músculos abdominais fracos resultam em lombagias.

  2. O fortalecimento dos músculos abdominais e do tronco podem diminuir

as dores lombares.

  1. Um suposto núcleo estabilizador do tronco forte previne lesões.

  2. Existe uma relação entre estabilidade e lombagia.

Proponho examinar estes pressupostos tendo em mente a sua similaridade aos fundamentos que sustentam o Power House.

Estabilização nuclear?

Essencialmente a coluna vertebral é uma estrutura instável. Quando a sua estabilidade é necessária, co-contrações dos músculos do tronco são ativadas. Os adeptos do Core Stability defendem que estas co-contrações são tarefa do Core, um núcleo muscular do tronco, anatômica e funcionalmente específico e que trabalha de forma independente em relação aos outros músculos. Mas sabe-se hoje que a estabilização do tronco não se faz através de um núcleo específico, mas por recrutamentos musculares que se modificam dinamicamente de acordo com as distintas e infinitas tarefas motoras que podemos realizar.

Independente?

O recrutamento independente, músculo por músculo, não existe. Se alguém traz a mão à boca, o sistema nervoso “pensa” na ação “mão à boca” e não na flexão do bíceps, seguida da flexão do peitoral e assim por diante. Ou seja, trazer a mão à boca é a ativação voluntária de um padrão de movimento (ativando vários músculos sucessiva e simultaneamente) e não o recrutamento isolado e voluntário de vários sucessivos músculos independentes.

Foi também comprovado que quando tocamos os tendões do abdominal reto, por exemplo, devido a reflexos miotáticos, reações são observadas em músculos adjacentes a este músculo, inclusive os contralaterais.
Estes argumentos expõem a incongruência da afirmação que um músculo ou um determinado grupo de músculos podem ser recrutados isoladamente. Mesmo assim, os alicerces do Core Stability sustentam uma suposta independência do Core, protagonizado pelo abdominal transverso, na estabilização do tronco.

Protagonista?

Reflexos miotáticos preparam antecipadamente todo e qualquer padrão de movimento, sobretudo quando a estabilidade do tronco é necessária. O abdominal transverso é um dos muitos músculos que participam destas coordenações antecipatórias. O fato de ele ser, entre os músculos anteriores, o primeiro a disparar estas coordenações antecipatórias, não significa que ele seja o protagonista.

Significa simplesmente que é o primeiro numa sequência de eventos.
Sim, o abdominal transverso participa da estabilidade do tronco. Mas não como um protagonista e sempre em sinergia com outros músculos que vão muito além daqueles que compõem o Core. A sua participação na estabilidade do tronco, vale lembrar, também se coordena com as suas outras funções como, por exemplo, o controle da pressão intra-abdominal na respiração, na vocalização, na defecação, no tossir, no soluçar, no vomitar etc.

Ativação intensa?

Qual é a intensidade necessária de co-contração dos músculos do tronco para a coluna se estabilizar? Aparentemente não muita. Conforme o artigo de Lederman, quando de pé, a estabilização ativa é alcançada com níveis muito baixos de co-contração dos músculos flexores e extensores do tronco, estimando-se menos de 1% de contração isométrica máxima, podendo chegar a 3% se uma carga de 32 quilos for adicionada ao tronco. Em casos de lesões lombares há um aumento de somente 2,5% em ambas circunstâncias. Curvando-se ou levantando um peso de 15 quilos há um

aumento de 1,5% de contração. Caminhando, a atividade média do abdominal reto é de 2% e 5% do abdominal oblíquo externo.
Para a maioria das pessoas seria praticamente impossível controlar conscientemente níveis tão baixos de co-contração.

Ativação constante?

Para garantir a suposta eficácia do Core e superar alguma possível disfunção do abdominal transverso, os defensores do Core Stability propõem a sua ativação voluntária ininterrupta. Porém a ativação constante de um grupo de músculos reduziria o rendimento de nossos movimentos, fossem eles movimentos funcionais ou especializados. Nossos corpos aprenderam evolutivamente a economizar o gasto energético para o seu melhor funcionamento. Aliás, estudos sugerem uma seleção natural a favor dos atletas que conseguem desenvolver características que favoreçam esta economia de esforços e energia.

Abdominais fracos desestabilizam a coluna?

Os níveis baixos de co-contração muscular necessários para a estabilização do tronco contradizem a afirmação recorrente que os músculos abdominais fracos desestabilizam a coluna. Para tanto, seria forçoso uma perda realmente substancial dessa massa muscular.

Abdominais fracos causam lombagias?

A musculatura abdominal sofre mudanças fisiológicas dramáticas na gravidez, no período pós-parto, na obesidade e em algumas intervenções cirúrgicas sem, necessariamente, causar lombagias.

Durante a gravidez a parede muscular abdominal experimenta um alongamento expressivo que se associa à sua perda de força e à sua inabilidade em estabilizar a pelve contra resistência. Em um estudo com mulheres grávidas, 16,6% delas mostraram-se incapazes de realizar um simples exercício abdominal, mas não se estabeleceu nenhuma correlação entre esta disfunção e lombagias.

No período pós-parto a musculatura abdominal leva entre quatro a seis semanas para recuperar o seu tamanho modificado durante a gravidez. É preciso oito semanas para normalizar a estabilidade pélvica. Numa pesquisa comparativa com 869 mulheres, entre uma abordagem comportamental cognitiva e outra de fisioterapia convencional para tratar as dores lombares pós-parto, 635 foram excluídas do estudo porque em uma semana após o parto elas tinham espontaneamente se restabelecido de suas lombagias. 635! Uma melhora surpreendente dentro de um período considerado insuficiente para a plena recuperação da força, do comprimento e do controle da musculatura abdominal aos seus níveis pré gravidez.

Como na gravidez, também seria esperado que na obesidade a distensão abdominal levaria a uma perturbação nos mecanismos normais de controle dos músculos abdominais. Mas estudos epidemiológicos tem demonstrado uma fraca associação entre a obesidade e as lombagias. E os danos musculares causados por cirurgias? Tais danos provocariam lombagias? Na reconstrução do seio após uma mastectomia é usado um dos lados do abdominal reto. Isto resulta em profundas alterações no controle motor e na biomecânica do tronco. Apesar disso, avaliações feitas muitos anos após tais cirurgias não têm acusado lombagias ou mesmo deficiências no desempenho funcional de movimentos.

O fortalecimento do Core reduziria as lombagias?

Estudos indicam que o tratamento de lombagias recorrentes através de exercícios específicos para o fortalecimento do Core traz, sim, melhoras significativas se comparadas com outras formas de terapia. Mas se for comparado a qualquer outro método de exercício físico, os benefícios em relação à redução das lombagias efetivamente se igualam, revelando que as melhoras são devidas aos efeitos positivos do simples se exercitar e não ao fato de se exercitar especificamente um suposto núcleo estabilizador do tronco.

O Core fortalecido preveniria lesões?

A maioria das lesões ocorrem em frações de segundos, bem antes que o sistema nervoso consiga se organizar para proteger a lombar. Frequentemente as lesões são associadas ao cansaço e ao excesso de atividade corporal. Estes fatores, aliados a movimentos inesperadamente rápidos, são geralmente a causa de uma lesão.

Músculos altamente tonificados e constantemente ativados do Core poderiam prevenir a ocorrência de lesões? Provavelmente não. A musculatura nestes padrões intensos e contínuos do Core pode se tornar potencialmente numa fonte de danos e lesões pois, uma força compressiva incessante sobre as articulações e discos vertebrais lombares, inutilmente desgastante e fatigante, tende a fragilizar a coluna.

Core Stability?

Nesta última década tem se chegado à conclusão que a presença de lombagias deve-se mais a fatores psicológicos, genéticos e comportamentais do que a causas biomecânicas. Como argumentado anteriormente, não há uma relação direta entre músculos abdominais fracos, a estabilização do tronco e lombagias. Em pacientes com lombagias crônicas, as estratégias motoras mudam, resultando numa intensa e complexa reorganização de músculos como os multifídios, psoas, diafragma, glúteos, músculos do assoalho pélvico etc. Nestes pacientes também acontece um retardamento na ativação do abdominal transverso, provavelmente funcional.

Mas nem sempre se pensou assim. Na década de noventa acreditava-se que o retardamento do abdominal transverso, um músculo profundamente conectado à fáscia lombar, seria resultado de uma disfunção. Uma disfunção que desestabilizaria o tronco. E a partir desta convicção foram construídos os fundamentos do Core Stability, validando, por similaridade, a prática do Power House. Porém, a premissa não é totalmente correta. O abdominal transverso não é o único músculo profundamente conectado à fascia lombar. Em nossa anatomia todas as partes e todas as estruturas estão intrinsecamente interligadas, inclusive as biomecânicas, a ponto de precisarmos de uma faca para separá-las umas das outras.

Power House?

O Power House, a Casa de Força, assim como o Core, pretende otimizar a sua suposta propriedade estabilizadora do tronco através de comandos continuamente acionados com imagens como ‘colar o umbigo na coluna’, ‘fechar o zíper da braguilha’, ‘afinar a cintura’ ou ‘reter o xixi’ (há quem bizantinamente defenda ‘prender o cocô’). As últimas instruções, as escatológicas, almejam como estratégia ativar o abdominal transverso a partir de um controverso recrutamento simultâneo do assoalho pélvico.
Mas na realidade a sua ação, infringindo a lei de economia de nossa fisiologia locomotora, acaba promovendo uma rigidez muscular, consequentemente motora, que compromete a também necessária instabilidade da coluna. Como vimos no início deste artigo, a coluna vertebral é essencialmente uma estrutura instável. Todo e qualquer padrão de movimento eficiente, consequentemente saudável, sobretudo quando a estabilidade do tronco é necessária, é aquele que ativa tão somente o que é preciso para a sua execução. Isto nem o Core, nem o Power House fazem. Muito pelo contrário.

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2 Comentários. Deixe novo

  • Raul Rachou
    12/12/2017 10:51 am

    Oi Silvia, super obrigado pela sua participação nesta conversa. Mas parece que houve um erro de digitação e fiquei sem entender claramente o seu comentário. Você poderia repeti-lo? Beijos.

    Responder
  • Silvia bittencourt
    05/12/2017 2:08 pm

    Gostei muito do artigo Raul.
    Concordo com você, só acho que para iniciantes funciona como sensibilizacao para posturas larga das demais
    Bjs Silvia Bittencourt

    Responder

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